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Epidemia: feminicídios explodem no Brasil, reflexo da estrutura violenta da sociedade

Por O Globo   Domingo, 7 de Dezembro de 2025

Nas últimas duas semanas, quase que diariamente, uma série de crimes bárbaros chocou o país: em todos, as vítimas eram mulheres — violentadas e mortas por serem mulheres. Em Florianópolis, uma jovem de 21 anos foi estuprada e estrangulada quando se dirigia para uma aula de natação. Em Jaborandi, na Bahia, outra, de 27 anos, foi arrancada do banho e assassinada a tiros pelo ex-namorado. Na Zona Norte do Rio, um servidor público matou a tiros uma professora e uma psicóloga no Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (Cefet), no Maracanã. Em São Paulo, uma mulher foi morta na pastelaria onde trabalhava pelo ex-marido, e uma jovem foi atropelada e, ainda presa no veículo, arrastada pela rua. Ela teve as pernas amputadas e foi internada em estado grave. O suspeito do crime, segundo a família da vítima, teve um breve relacionamento com ela.

Em 2024, o Brasil bateu recorde de feminicídios desde 2015, quando o crime foi tipificado por lei sancionada pela ex-presidente Dilma Rousseff: 1.492 casos. Só na capital paulista, de acordo com dados coletados pela Globonews, houve 53 feminicídios apenas este ano, o maior número da série histórica. Já no estado de São Paulo, os feminicídios aumentaram 10% desde janeiro, informou o Instituto Sou da Paz. E a ocorrência de assassinatos de mulheres em vias públicas quase dobrou do ano passado para cá: um salto de 33 para 48 ocorrências, no comparativo entre os dez primeiros meses de 2024 e 2025.

Crime que vem crescendo — Foto: Editoria de Arte
Crime que vem crescendo — Foto: Editoria de Arte

A violência contra a mulher também bate recorde na internet. No Rio, as denúncias de perseguição e assédio virtual cresceram mais de 5.000%, passando de 55 para 2.834 na última década, conforme atestou o recentemente divulgado Dossiê Mulher.

A explosão recente no número de crimes, portanto, não é um ponto fora da curva, mas evidência de que o país vive uma epidemia de violência contra a mulher, resultado de séculos de brutalidade social e cultura misógina.

— É inegável que as redes sociais radicalizaram o ódio às mulheres e o feminicídio no Brasil, transformando essas violências em conteúdos altamente rentáveis, inclusive. Mas, se a mudança de escala do alcance dessas notícias é novidade da contemporaneidade, o ódio e a violência contra as mulheres são constitutivos da história brasileira. Isso significa lembrar o que foi e ainda é apagado na nossa história: o desenvolvimento econômico, político e cultural do Brasil ocorreu a partir da desumanização e objetificação das mulheres por meio da exploração colonial, do trabalho escravo, do controle, da vigilância e de toda sorte de violências de seus corpos e mente — enumera a historiadora Patrícia Valim, professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA). — As mulheres que resistiram às violências e que moldaram a nossa sociedade foram agredidas, mutiladas e mortas.

 

Morta por ser mulher

 

Patrícia é autora dos textos que resgatam as histórias de mulheres que foram mortas por serem mulheres e ousarem tomar as rédeas das próprias vidas. Os conteúdos narram as violências a que elas foram submetidas, esmiúçam os argumentos mobilizados para defender os assassinos (como a “legítima defesa da honra” e a “loucura momentânea”) e questiona como a sociedade brasileira dos séculos XIX e XX elaborou as histórias dessas mulheres — algumas delas foram transformadas em santas milagrosas ou em assombrações que até hoje vagam sem destino.

Tudo parece tristemente atual. Os textos denunciam ainda a persistência de vícios jurídicos e sociais que, ainda hoje, condenam mulheres à morte. Na avaliação de Patrícia, recordar essas histórias significa humanizar essas mulheres e mostrar que sua existência não se resumiu a serem vítimas de feminicídio.

— Precisamos enfrentar esse “necrotério” de registros para resgatar vidas invisibilizadas de uma forma que desafie a reprodução do feminicídio e o apagamento dessas histórias. O Levante Mulheres Vivas ocupará as ruas dos país inteiro para lembrar essas mulheres e dar um basta a essas violências — diz a historiadora, referindo-se às manifestações que acontecem hoje por todo o Brasil em defesa da vida das mulheres.

Leia abaixo um dos textos da historiadora.

 

'Legítima defesa da honra'

 

Salvador, 20 de abril de 1847. Caía a noite quando João Estanislau da Silva Lisboa, de 27 anos, invadiu a casa de Júlia Clara Fetal, sua ex-noiva. Ele deu um tiro na jugular da moça de 20 anos, tentou matar a mãe dela, a francesa Julie Fetal, e feriu gravemente a mão do desembargador Manoel Vieira Tosta, vizinho que jantava ali e conseguiu chamar a polícia para prender o assassino em flagrante.

O crime repercutiu em jornais do país inteiro. Políticos conservadores alinhavam-se ao clamor popular que exigia justiça e punição exemplar para o assassino. Em defesa do réu, políticos liberais propunham uma pena mais branda e, pela primeira vez, falaram em “legítima defesa da honra”: João Estanislau seria um homem honesto e trabalhador que, por uma “paixão senil”, perdeu momentaneamente a razão no ato do crime.

Criado no julgamento de João Estanislau, o dispositivo da privação da razão foi incluído no Código Republicano de 1890. “Não são criminosos os que se acharem em estado de completa privação dos sentidos e de inteligência no ato de cometer o crime”, afirma o artigo 27, § 4.º, que continuou autorizando a absolvição e a redução das penas mesmo depois de retirado do Código Penal de 1940. A tese da “legítima defesa da honra” teve vida longa nos julgamentos de feminicídios no Brasil.

 

Noivado a jato

 

Neto de um traficante de escravizados, João Estanislau nasceu em Calcutá, na Índia, e foi criado em Salvador pela mãe, a inglesa Mary Ann. O declínio financeiro não impediu que os dois frequentassem a elite soteropolitana. O rapaz, porém, tornou-se o primeiro da família a precisar trabalhar para viver. Ensinava geografia no Liceu Provincial e dava aulas de inglês. Foi como professor que chegou à casa de Júlia, que recebera a educação típica de uma moça branca e rica da época: tocava piano, costurava, desenhava, falava francês e parecia destinada a se casar com um rapaz do mesmo grupo social. João Estanislau se apaixonou e a pediu em noivado depois da primeira aula.

A notícia de um possível casamento entre a fortuna da noiva e o sobrenome tradicional do noivo atiçou Salvador. Mas Júlia não estava apaixonada. Ela era bonita e cheia de vida; ele era cabisbaixo, tinha mau gênio e colecionava brigas pela cidade. O rompimento definitivo veio quando a jovem conheceu Luiz Antônio Pereira Franco, estudante de Direito do Recife que passava férias na casa vizinha à da família Fetal. Os dois trocavam cartas com o consentimento da mãe dela. Demitido das aulas, recusando-se a aceitar o fim do noivado e se sentindo publicamente traído, João Estanislau jurou vingança. Num fim de tarde de abril, cumpriu a ameaça.

Com julgamento marcado, João Estanislau alegou problemas de saúde e se internou na Santa Casa de Misericórdia para afastar o boato de que planejava fugir. Em 29 de setembro de 1847, dois terços do júri livraram o réu da pena de morte e o condenaram a 12 anos de prisão. A defesa conseguiu que o tribunal reconhecesse o direito de um homem de vingar sua honra. A inovação do julgamento foi interpretar a honra como propriedade inviolável e introduzir o conceito de “loucura momentânea”, capaz de despersonalizar um homem de “bom passado”, cujo crime teria resultado de um ato ocasional de desespero e ciúmes.

João Estanislau continuou ensinando inglês aos filhos da elite baiana, que os levavam ao presídio para as aulas. Ao sair da cadeia, ele assumiu a direção da instituição de ensino mais prestigiada da Bahia, o Colégio São José. Em 1876, publicou o livro “Atlas Elementar”, adotado pelas escolas provinciais e até hoje considerado obra de referência. Hoje, dá nome a uma rua da Baixa dos Sapateiros, em Salvador.

Os restos mortais de Júlia Clara Fetal repousam na Igreja da Graça, na capital baiana. Sua história tem sido contada em verso e prosa e, não poucas vezes, seu desejo de ser livre e se casar com o homem que amava foi usado para justificar seu assassinato. Em “ABC de Castro Alves”, Jorge Amado a descreve como “traiçoeira como a correnteza, gostava de ver pousados no seu rosto os olhos dos homens e de ver presos ao seu sorriso os corações de todos que encontrava”.

Em 2023, 176 anos após o assassinato de Júlia, a tese da “legítima defesa da honra” foi considerada inconstitucional por unanimidade pelo Supremo Tribunal Federal. No entanto, ainda precisa ser erradicada da sociedade brasileira.

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