Joelma e a banda Calypso cantariam que não dar o título à cidade onde começaram sua trajetória de sucesso seria uma traição pior do que a cometida pela Lua. Reginaldo Rossi, vivo fosse, estaria assistindo à briga ao lado do garçom em uma mesa de bar — e inconsolável se a sua postulante acabasse desprezada. Recife e Belém disputam no Congresso a paternidade do brega, o gênero musical que não se envergonha de bradar a infelicidade amorosa e se tornou motivo de orgulho para as duas capitais.
Na semana passada, o Senado aprovou o projeto de lei que concede a Recife o título de Capital Nacional do Brega, mas contrariou belenenses, que também reivindicam o posto. Para pesquisadores musicais, ambos os estados são referências do movimento, cada um com sua particularidade, o que dificulta a seleção de apenas um como o verdadeiro berço do estilo musical.
O texto do projeto foi aprovado na Comissão de Educação do Senado e já pode ir à sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), mas, nesta segunda-feira, o senador paraense Beto Faro (PT) encaminhou um recurso para levar à discussão do projeto a plenário. Ele quer que a iniciativa contemple as duas capitais.
— Belém tem uma trajetória histórica no desenvolvimento desse gênero musical. Vem da guitarrada, da batida indígena do bolero, do carimbo e da lambada — argumenta Faro.
O relator do texto no Senado, o senador Humberto Costa (PT-PE), será procurado por Faro em busca de um consenso. Na semana passada, quando o texto foi aprovado, ele destacou a importância cultural e econômica do movimento.
— No Recife, o brega não somente é uma atividade cultural relevante, mas também uma atividade econômica relevante. E foi um gênero que cumpriu papel de resistência na ditadura militar, o movimento brega falava para uma população importante. Odair José foi o cantor mais censurado pela ditadura — discorreu Costa.
No Recife, o gênero teve em Reginaldo Rossi, morto em 2013, sua grande voz. Depois, vieram cantoras como Priscila Senna e Michele Mello. Hoje, o bregafunk arrasta multidões com MC Loma, MC Elvis e MC Neiff. Até o famoso carnaval pernambucano tem espaço dedicado ao gênero, e o festival Recife Capital do Brega é um dos eventos anuais da cidade. A estética do "brega lifestyle" é tão forte que bares como Confraria dos Chifrudos e Bar dos Cornos realizam eleições de "chifrudo do ano", em tom bem-humorado.
Aimportância do brega foi reconhecida até pelo prefeito João Campos (PSB), que já dançou no palco com cabelo descolorido e óculos juliette e adota o ritmo do brega funk nos seus vídeos desde as eleições de 2020. Seu irmão mais novo, o deputado federal Pedro Campos (PSB), foi o autor da lei que criou o Dia Nacional do Brega — 14 de fevereiro, data de nascimento de Reginaldo Rossi.
Enquanto movimenta a cultura do Recife, o brega também mostra sua força em Belém. Desde a década de 70 o ritmo dita as festas de aparelhagem, nome dado às grandes estruturas de luz e de som que se tornaram polo cultural e social especialmente nas periferias. Hoje, o tecnobrega é reconhecido internacionalmente, e em 20223 a cantora Gaby Amarantos foi premiada com o Grammy Latino por seu álbum "Tecnhoshow".
Thiago Soares, pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e autor do livro "Ninguém é perfeito e a vida é assim: a música brega em Pernambuco", explica que o gênero nasceu como uma derivação da Jovem Guarda, como uma música de traço popular, com shows nas periferias. Enquanto chegou ao Rio e São Paulo com cantores migrantes, como Amado Batista (vindo de Goiás) e Nelson Ned (de Minas Gerais), cenas locais do brega se desenvolviam no Recife e em Belém.
— O brega está presente em vários contextos brasileiros, primeiro como essa música cafona dos cantores românticos. É como se os cantores da Jovem Guarda fossem o pop mainstream e o brega a dissidência de classes populares, do universo da bebedeira, da dor de cotovelo. Mas surgiu simultaneamente, tanto no Sudeste, como no Recife e em Belém — explica Soares, que rechaça a busca por um marco zero geográfico. — A discussão sobre qual capital é a origem acho uma disputa boba, mais para o campo da política. Certamente as duas cidades são a capital do brega, e é importante ter leis que reconheçam o movimento.
Com o tempo, o fenômeno se "territorializou", diz o especialista, se apropriando de elementos locais. Em Pernambuco, a música passou pelo eixo seresteiro e romântico até chegar à batida acelerada do bregafunk, com letras mais sexualizadas. Já em Belém, ela é mais ligada à produção latinoamericana, com influência caribenha e da cúmbia.
Se é difícil escolher uma única origem, Soares destaca que Reginaldo Rossi foi, sim, a primeira figura nacional do brega:
— Ele tem seu grande hit, "Garçom", em 1983, uns 20 anos antes da ascensão do Calypso. Talvez ele seja a figura que nacionalizou. Amado Batista e Nelson Ned eram figuras de migrantes no Sudeste, enquanto Reginaldo Rossi reivindicou esse vínculo com Pernambuco.
O pesquisador e jornalista Gabriel GG Albuquerque concorda que a origem geográfica é questionável e dependerá da linha de pesquisa. Ele explica que, com o tempo, o brega abrangeu nuances muito grandes.
— É uma espécie de conglomerado com diversas musicalidades, cenas locais, dinâmicas próprias de festa, de produção e de criação, que são muito distintas — afirma Albuquerque, que, por outro lado, cita traços em comum entre as diferentes manifestações. — Em geral o brega tem o amor como um tema, e por um bom tempo também teve o teclado como o seu instrumento primordial. Mas hoje a gente tem essa coisa muito diversificada, embora amor, sofrimento e chifre sejam temas que unem muitos deles.
Já Yuri Castro, o Yuri da BS, pesquisador de música eletrônica popular na Equipe Bota Som, pontua que o termo brega foi imposto posteriormente aos movimentos locais, iniciados nas décadas de 60 e 70. A amplitude desse universo brega inclui influências que vão de Freddy Mercury a Ivete Sangalo. Reginaldo Rossi e o paraense Wandereley Andrade, por exemplo, começaram suas carreiras cantando em bandas de rock.
— É um gênero que tem bolero, merengue, mambo, samba, cumbia, Jovem Guarda, lambada, pop, sertanejo, forró... Um movimento muito peculiar da nossa música e que tem uma relação mútua com o público onde está inserido. Ninguém quer perder o brega para outro lugar porque aquilo faz parte intrínseca de si, do local. O justo seria que ambas fossem capitais do brega, por terem desenvolvido o gênero com paixão e cada um com seu jeitinho — opina Yuri da BS.
O cantor Gomes traz uma nova roupagem ao estilo, em misturas com reggaeton e funk em seu álbum de estreia Puro Transe, lançado semana passada, com inspiração especial no "sentimento exacerbado" do brega romântico. Como pernambucano, ele diz achar "engraçada" a discussão sobre a capital do gênero, porque diz, com bom-humor, que qualquer recifense já nasce acreditando que a cidade é a verdadeira capital:
— Mas essa disputa só agrega, porque mostra a nossa cultura para o Brasil, não é só eixo Sudeste. Antes o gênero era mais marginalizado, depois foi ganhando força e hoje é referência, em ritmo, letra, até na energia. Tanto que o bregafunk e o tecnobrega estão aí.