"Deus tem a forma Dele de ressuscitar. Ressuscitar, para Deus, pode ser levar um espírito para o céu". A frase é de Ana Maria Oliveira Rodrigues, de 56 anos. De filha de lavrador que plantava milho e soja em Joviânia, no interior de Goiás, ela se tornou celebridade, da noite para o dia, em Goiatuba, cidade vizinha de sua terra natal, onde passou a morar. Na segunda-feira à noite, o tempo parou no local de pouco mais de 35 mil habitantes. Centenas de pessoas foram para a porta da funerária Paz Universal esperar o momento em que o marido de Ana Maria, o pastor Huber Rodrigues, de 49 anos, ressuscitaria. Não aconteceu. Por volta de meia-noite, o estabelecimento, que existe há 44 anos na região, deu início à cerimônia de despedida que, pela primeira vez, aconteceria de madrugada. A pedidos.
Com o coração na mão e dividida até o último minuto, porque temia que a profecia que o próprio marido fez constar em documento em 2008 não se cumprisse, Ana Maria não se envergonha, apesar de algumas pessoas terem transformado o caso em piada. Os cristãos queriam um milagre, que consistiria em Huber sair do caixão com as próprias pernas. Os céticos, por sua vez, só assistiam a distância por pura diversão. Uma "live" acompanhava os acontecimentos em tempo real.
— Não me importo com as brincadeiras, eu entendo. Mas muita gente que estava do lado de fora da capela viu um clarão no céu na hora em que o Huber tinha pedido para ser feito o sepultamento. Ele foi muito claro quanto ao horário. Ele tinha muito medo de ser enterrado vivo — conta Ana Maria, lembrando que, além da luz repentina, começou a chover. — Deus sabe o que faz, a minha fé não ficou abalada, muito pelo contrário, foi avivada. Eu estou com a minha consciência tranquila de que atendi a um pedido do meu marido, que tanto bem fez para esta comunidade.
Quando os dois se conheceram, Ana Maria era solteira e tinha 30 anos, e Huber, mais novo, 23. Os dois nunca puderam ter filhos e saíram de Joviânia para tentar uma vida melhor em Goiatuba. Lá, enfrentaram "atribulações". Criada numa família religiosa - "minha mãe era católica de verdade" -, ela passou a dormir mal à noite, e o marido a ter episódios de desmaios que acabavam nas emergências da região. Formada técnica em contabilidade, ela acredita que a situação foi superada à medida que os dois foram cada vez mais mergulhando na religiosidade. Convidada por amigos, ela passou a frequentar um templo evangélico. "Vivíamos um para o outro e para o ministério", diz, acrescentando que, sem filhos, sentia até então um vazio no peito que só o coração da mulher entende.
— Só quem não pôde ter filhos sabe o que é isso. Logo que casamos, o médico me examinou e disse que eu não podia ter um bebê, sem explicar a razão. E eu não procurei saber. Acho que ele falou assim para evitar mais sofrimento — recorda-se Ana Maria, que tem sete irmãos que se revezam no apoio emocional a ela desde que o marido adoeceu.
O casal teve Covid-19 junto. Ana Maria se recuperou em casa, Huber um dia após os primeiros sintomas foi internado e intubado. Em 26 anos de união, foi a primeira vez que ela passou mais de um mês sem vê-lo.
— Mas ele começou a melhorar e melhorar. Pela graça de Deus porque ele ficou muito grave, a ponto de fazer hemodiálise, dia sim, dia não. Os médicos falavam que ele estava se recuperando, retiraram do tubo e só o deixaram na UTI para ter um suporte de oxigênio. Eu avisava todos os dias à família dele, dava notícias, estávamos esperando a alta. Passamos a nos ver pela câmera do celular porque, devido à pandemia, ninguém pode entrar no hospital (Itumbiara, a cerca de 50km de Goiatuba). Na quinta-feira, foi a última vez que nos vimos. Eu estava no nosso ministério e outros missionários também viram como ele estava pela câmera do celular. No sábado, entretanto, houve uma piora e ele partiu após ter uma parada cardiorrespiratória.
— Na hora, você pensa: "Deus, não vai acontecer?" Não foi fácil para mim, fiz tudo com toda a minha alma e minha fé. De fato, eu sou testemunha de que ele não exalava qualquer mau cheiro. A pele dele era íntegra, mesmo sem ter passado pelos procedimentos de conservação do corpo. Isso nunca aconteceria, numa situação normal, com uma pessoa que estivesse morta há tanto tempo, porque o odor seria muito forte. Fui todos os dias à capela vê-lo, estava intacto. Acho que só Deus sabe os motivos de as coisas terem acontecido desse jeito. As pessoas que não são tão espirituais não acreditam, eu entendo a reação— diz Ana Maria, que não espera ter problemas com a Justiça, embora a Vigilância Sanitária da Prefeitura de Goiatuba tenha autuado a funerária e aberto um processo administrativo por infração sanitária porque o corpo não foi submetido à tanatopraxia, quando é embalsamado para suportar um período maior de tempo até o sepultamento.
— A funerária e a família me procuraram para pedir autorização. Mas eu não poderia dar. As regras da Anvisa não permitem. O corpo, dependendo das condições, exala mau cheiro e elimina substâncias que podem ser prejudiciais à saúde das pessoas — explica o farmacêutico Luciano Borges Chaves, fiscal da Vigilância.
O casal faz parte de uma comunidade que já representa cerca de 30% dos praticantes de alguma religião no país, segundo pesquisa do DataFolha divulgada no ano passado. Pelos números, 50% dos brasileiros são católicos, 31% evangélicos e 10% não têm religisão. Uma proporção que cresceu em relação ao úlltimo Censo de 2010, quando havia 42.275.440 evangélicos no Brasil, 22,2% da população à época. O professor Valdemar Figueiredo, doutor em Ciência Política, pastor e membro do Instituto Mosaico, afirma que a situação causa um assombro por acontecer em pleno século XXI:
— Mesmo quem é religioso leva um susto quando se depara com pessoas que acreditam dessa forma. Remete a um tempo bíblico em que Lázaro estava morto e Jesus o chama à vida. Mas estamos falando de um tempo em que não havia laudo médico, atestado de óbito, além de ser uma narrativa muito mais poética do que um texto objetivo — observa.
Homem de fé e também evangélico, o gerente da funerária Paz Universal, José Dourado, explica que estranhou o pedido, mas acredita em milagres. Ele lembra que a Bíblia - "em outros tempos, é claro" - mostra que é possível. Além disso, ressalta que o objetivo do serviço funerário é amparar a família do morto da melhor forma.
— Como cristão, acreditei que pudesse acontecer um milagre. A gente vive e está todo dia aprendendo. Não aconteceu com Lázaro? — indaga ele que acompanhou toda a cerimônia até a descida do caixão excepcionalmente na madrugada de segunda para terça-feira.
A Igreja Assembleia de Deus Maranata (Catedral dos Milagres), que o casal mantinha em parceria, vai continuar de portas abertas, de acordo com Ana Maria, que foi auxiliar administrativa quando mais jovem enquanto Huber foi motorista de ônibus:
— Eu era a mulher do pastor, agora eu tocarei a obra do Senhor.
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