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Uma das aves mais raras do mundo não é vista desde 1996 e mobiliza expedição

Por O Globo    Domingo, 24 de Março de 2024


Um mistério ronda a Mata Atlântica há mais de um século. Desde 1890, o Calyptura cristata, mais conhecido como tietê-de-coroa, só foi avistado uma vez, em 1996. O sumiço do pequeno pássaro de menos de 10 centímetros lhe garantiu o posto de uma das aves mais raras do mundo e atiça o imaginário de ornitólogos do Brasil e exterior, arrebatados e movidos pelo enigma. Em novembro do ano passado, uma pesquisa identificou 104 espécimes empalhadas em coleções de 47 museus pela Europa e nos EUA, reforçando o fato de que o tietê era facilmente encontrado no século 19, nas florestas fluminenses.

Nos século 19, o Brasil era destino de muitos naturalistas estrangeiros, interessados em negócios com colecionadores de material da história natural. A fauna de aves brasileiras era um dos “mercados” mais aquecidos desse meio, e na época, as peles do tietê-de-coroa eram itens valiosos por serem encontrados apenas no Estado do Rio. Estufadas com algodão ou palha, as amostras dos pássaros tiveram como destino dezenas de museus e coleções particulares de magnatas, especialmente da Europa. Suas identificações traziam poucas informações, como localização precisa de origem, e o último registro é de 1890.

Por mais de 100 anos, o tietê não foi mais visto. Nos anos 1970, com os estudos sobre ecologia no Brasil, novos ornitólogos se dedicaram a buscas de aves “sumidas” da Mata Atlântica. Expedições começaram a ser planejadas mirando três espécies: formigueiro-de-cabeça-preta, saíra-apunhalada e tietê-de-coroa. Os dois primeiros foram encontrados respectivamente em 1987 e 1998, em Angra dos Reis e no Espírito Santo, e até hoje são monitorados.

O rastro do tietê-de-coroa — Foto: Arte O Globo
O rastro do tietê-de-coroa — Foto: Arte O Globo

 

Por acaso

Apenas o tietê foi visto uma única vez. Em um de seus passeios de rotina, o observador Ricardo Parrini se deparou com um par na região do Garrafão, na Serra dos Órgãos, na altura de Teresópolis.

— Ele chegou em casa e me ligou e então fui para lá no dia seguinte — conta o biólogo Fernando Pacheco, do Comitê Brasileiro de Registro Ornitológico, coautor do estudo de novembro, e que se dedicava às buscas pelo pássaro na época. — Voltamos no ponto em grupos de três ou quatro pessoas por mais cinco dias. Infelizmente, poucos tinham máquinas fotográficas com a lente adequada para fotografar um pássaro tão pequeno na copa de uma árvore. No último dia levamos uma filmadora profissional, mas por alguns segundos não conseguimos registrar o que seria a única imagem do bicho vivo até hoje.

Além da tentativa de imagens, o grupo deixou o gravador ligado para registrar o canto do pássaro, mas também não houve sucesso. Hoje, mesmo com o crescimento da comunidade de observadores de aves, a ausência de foto e do canto do tietê é um obstáculo para que ele seja identificado. O fato de ele ser tão pequeno e ocupar copas de árvores grandes também dificulta. Nas décadas seguintes, houve relatos de aparições do tietê em Ubatuba (SP), mas estes foram desacreditados pelos ornitólogos devido à ausência de informações precisas.

— Isso acontece com todas aves desaparecidas e extintas. Sempre tem alguém que diz que encontrou em algum lugar. Fica como um folclore. Em muitos casos, a pessoa acredita de verdade ter visto, mas não há evidência concreta. Eu mesmo voltei ao Garrafão mais de 30 vezes depois e nunca mais encontrei — diz Pacheco, que acredita na hipótese de que uma doença tenha dizimado a população de tietês, além dos efeitos do desmatamento. — Tenho o lado otimista, que acha que ele pode ser encontrado. Mas também penso que há um exército de observadores equipados e ninguém foi capaz de fazer uma mísera imagem. Fico meio otimista e meio cético.

 

Acervo de museus

 

Por muito tempo, acreditava-se que o número de registros de espécimes empalhadas do tietê não passava dos 50 em museus internacionais. Ao lado dos ornitólogos Robson Silva, da Unesp, do suíço Manuel Schweizer e do inglês Guy Kirwan, Pacheco procurou centenas de museus mundo afora em busca dos registros. O resultado foi surpreendente, pois revelou uma quantidade maior do que se conhecia. Eles encontraram 104 espécimes, em 47 museus, a maioria na Alemanha, EUA, França, Reino Unido e Suíça, e um no Brasil.

— É chocante se dar conta que ela era bem mais comum no século 19 do que a gente imaginava. É difícil interpretar como algo tão comum tenha sumido, é um grande enigma — afirma Pacheco.

A descoberta reanimou especialistas e observadores que se dedicam à “busca pelo Santo Graal”, como define o ornitólogo Leandro Lima. Através do Observatório de Aves do Instituto Butantan, ele organizou duas expedições em 2016 e 2017. O tietê não foi encontrado, mas o grupo achou outras aves identificadas pelos mesmos naturalistas europeus que o coletaram no século 19. Agora, ele deseja organizar uma nova expedição.

Lima acredita que a aparição em Teresópolis, no “vértice úmido” da Serra dos Órgãos, tenha sido ocasional, e que seu ambiente seja na verdade as florestas do chamado “vértice seco”: as costas da serra, onde ficam Duas Barras, São José do Vale do Rio Preto e parte de Friburgo, cidades mais próximas do Vale do Paraíba, em que houve muito desmatamento por causa das plantações de café.

— Ele ainda aguarda ser descoberto — afirma o esperançoso Leandro Lima. — O Brasil é o país da biodiversidade e a história dessa ave é super emblemática, porque não é uma perdida no meio da Amazônia remota. É um bicho a uma hora e meia da capital, se ainda existir, mas pode estar habitando um fragmento de mata que não é protegida e sumir de vez a qualquer momento.

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